Paradoxalmente, a pandemia da COVID-19, que se desenrola desde, pelo menos, Dezembro do ano passado, sublinhou a forma como o capitalismo também gerou calamidades gigantescas: autoritarismo e vigilância através de alta-tecnologia; militarismo (tanto no discurso como nas ações: há uma guerra contra o vírus); estados incapazes de fabricar - e por isso virados para a pilhagem - kits básicos de protecção e higiene pessoal (máscaras, luvas, papel higiénico), assim como equipamento médico mais complexo (ventiladores, oxímetros); falta de pessoal, subfinanciamento, delapidação e, em muitos casos, sem infra-estruturas públicas de saúde; vida precária (onde a subsistência depende do salário mensal/semanal/diário/horário que se ganha como empregado/a, ou como freelancer na "gig economy"); a incapacidade de cuidar de pessoas doentes e vulneráveis; a violência meticulosa de valor ou a incapacidade de considerar os humanos fora da sua função enquanto trabalhadore/a(s) na economia capitalista (trabalho aqui, como definido por Hannah Arendt, corresponde ao mundo artificial de objectos e mercadorias construídas pelos e através das próprias pessoas); e por último, mas não menos importante, a tragédia de alguém que amas morrer sozinho/a sem que tenhas podido despedir-te.
No que destaca e revela, a pandemia COVID-19 (o que a precipitou, agravou, como lá chegámos, as suas consequências estruturais actuais e futuras, e os seus limites) não é diferente do lançamento, em 1957, do Sputnik-1, o primeiro satélite espacial do mundo que levou Hannah Arendt a explorar a forma como a interseção das formas de alienação do mundo e da Terra ameaçava o futuro da própria vida. A nossa condição contemporânea surge precisamente da relação paradoxal entre tecnologia, ciência, perícia e riqueza concentrada nas mãos de poucas pessoas, e o trabalho humano (como quem que produz, reproduz e sustenta a vida) nas das outras. Se a humanidade pudesse ir para o espaço, se algoritmos informáticos pudessem tomar decisões judiciais, se ensaios controlados randomizados pudessem determinar a melhor forma de melhorar a situação de pobreza global, tudo isto teria também alterado radicalmente o campo das possibilidades existenciais e tornado ainda mais difíceis os compromissos mais antigos e mais fundamentais com políticas e preocupações mundiais. Mais de meio século depois de Sputnik, a pandemia da COVID-19 provoca questões comparáveis, embora colocadas de forma diferente: expõe o facto de que a forma como organizamos e produzimos as nossas sociedades e o nosso mundo nos deixa desprevenidos face às ameaças do mundo.
Numa escala menor e mais local, o Líbano não é diferente. Na verdade, é o epítome do fiasco. É o descalabro do mundo "globalizado" (uma palavra desprezível) que criámos para nós próprios. Um mundo destroçado, constituído por relações estilhaçadas e disfuncionais entre seres humanos e não-humanos (árvores, rios, pontes, barragens, centros comerciais, carros de quatro rodas, multibancos, um quilo de arroz, um diploma da escola secundária, o vírus); seres humanos uns com os/as outros/as; e política. Se há um sector, um campo de actividade, onde isto é mais óbvio (ainda mais dadas as circunstâncias actuais), é o sector da saúde.
O sistema de saúde do Líbano está altamente privatizado, sendo cerca de 70% dos centros de cuidados de saúde primários e 80% dos hospitais (incluindo pelo menos 8 hospitais universitários) pertencentes ao sector privado. Está também fragmentado, uma vez que está construído no seio de parcerias público-privadas complexas, com múltiplas fontes de prestação de serviços, financiamento e gestão (realizadas por instituições que aprovam protocolos reembolsáveis, estabelecem cursos de tratamento reconhecidos e autorizados) para o/a(s) doentes.
Os prestadores de serviços incluem hospitais públicos semi-autónomos, hospitais privados sem fins lucrativos, hospitais privados com fins lucrativos e mais de 700 centros de cuidados de saúde primários e Centros de Desenvolvimento Social que prestam serviços de cuidados de saúde primários - 70% dos quais são geridos por Organizações Não-Governamentais (ONG) (locais e internacionais) e associações afiliadas a instituições religiosas ou partidos políticos. O Ministério da Saúde Pública também supervisiona uma rede de cerca de 220 clínicas que oferecem pacotes de cuidados abrangentes - incluindo saúde sexual e reprodutiva - e que foram acreditadas pelo Ministério. As fontes de financiamento são bastante variadas. Incluem, entre outras, o Ministério da Saúde Pública, o Fundo Nacional de Segurança Social (NSSF), os fundos das forças armadas, cooperativas de funcionários públicos, ONG e companhias de seguros privadas. Actualmente, cerca de 47 por cento da/o(s) cidadã/o(s) libanese/a(s) têm cobertura de seguro de saúde. Cerca de 23 por cento destes estão coberto/a(s) pelo NSSF, nove por cento por regimes militares, sete por cento por seguros privados, quatro por cento pela Cooperativa dos Funcionários Públicos, e quatro por cento por outros regimes. O/a(s) restantes 53 por cento não têm qualquer cobertura formal e sendo abrangido/a(s) pelo Ministério da Saúde Pública, que funciona como "seguradora de último recurso". É também de salientar que a cobertura dos cuidados de saúde ao nível das clínicas de cuidados primários é assegurada pelo programa específico do Ministério para os cuidados primários financiado pelo Banco Mundial através de uma combinação de subvenções e empréstimos (150 milhões de USD).
Existem outras formas e fontes de cobertura de saúde para os não-cidadã/o(s) que vivem no Líbano. O/a(s) refugiado/a(s) palestiniano/a(s) têm acesso à saúde através de sistemas de saúde geridos e/ou financiados pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente (UNRWA), incluindo clínicas de cuidados primários geridas pela própria UNRWA, hospitais geridos pela Sociedade do Crescente Vermelho da Palestina e hospitais privados ou públicos inscritos no sistema de saúde libanês (onde os custos de tratamento são cobertos por fundos da UNRWA e dos seus parceiros). Como é do conhecimento geral, e há muito tempo, a UNRWA tem vindo a enfrentar repetidos cortes de financiamento, serviços tensos e descontinuidade nos programas. O/a(s) refugiado/a(s) sírio/a(s) têm acesso aos cuidados de saúde através dos mecanismos de apoio do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), incluindo parcerias com ONG internacionais e/ou locais. Este/as têm acesso às diferentes clínicas do país que são apoiada pelo ACNUR ou por ONG. O ACNUR proporciona também acesso subsidiado a níveis mais especializados de cuidados de saúde nos hospitais libaneses. Também aqui tem havido uma tendência geral: fundos continuam a diminuir enquanto os hospitais privados continuam a lucrar com corpos humanos. Ainda sobre este ponto: o/a(s) trabalhadore/a(s) migrantes não têm cobertura de cuidados de saúde para além do seguro médico obrigatório de kafala. Embora tecnicamente permita aos/às trabalhadore/a(s) migrantes com documentos válidos aceder aos cuidados essenciais nos hospitais públicos, a sua realidade é outra. Para além do apoio que recebem de certas ONG, o/a(s) trabalhadore/a(s) migrantes indocumentados não têm qualquer cobertura de cuidados de saúde. Por último, mas não menos importante, e com as contribuições do Fundo Fiduciário do Banco Mundial para o Líbano e do ACNUR, o Governo do Líbano - através do Ministério dos Assuntos Sociais - continua a implementar o Programa Nacional de Redução da Pobreza (NPTP) já criado em 2011 no âmbito do Segundo Projecto de Emergência de Apoio à Implementação da Protecção Social no Líbano (projecto ESPISPII). Este projecto envolveu assistência social a 40.000 famílias libanesas extremamente pobres, mas também, entre outras coisas, cobertura de saúde para beneficiário/a(s) em hospitais públicos e privados através da dispensa de 10-15 por cento de comparticipações para hospitalização.
A guerra civil libanesa teve um impacto tremendo nos sistemas de saúde do país. Entre 1975 e 1990, a prestação de serviços de saúde por parte do governo diminuiu tremendamente. Estes longos anos de conflito civil levaram também à destruição sistemática das capacidades financeiras, infra-estruturais e institucionais do sector da saúde pública. Em 1990, apenas metade dos 24 hospitais públicos se mantiveram operacionais, com um número médio de camas activas não superior a 20 por hospital. Os hospitais públicos foram destruídos, encerrados, tornados inoperacionais, o/a(s) médico/a(s) e enfermeiro/a(s) trabalharam até à exaustão e muito/a(s) fugiram do país. Inversamente, durante a guerra, houve também uma multiplicação de clínicas pertencentes a ONG, várias associações e partidos políticos - estas clínicas de cuidados de saúde primários assumiram lentamente os serviços que deveriam ter sido prestados pelo sector público. Ainda por cima, as agências da ONU desempenharam um papel importante na concepção e implementação de programas de saúde essenciais, em coordenação conjunta com as ONG. As actividades médicas destes centros dependiam fortemente da disponibilidade de medicamentos que eram frequentemente doados por agências como a UNICEF, que os utilizavam como incentivos para encorajar os programas de prevenção entre as ONG.
Assim, a guerra, de certa forma, precipitou a viragem para uma privatização total do sector de saúde no Líbano. Enquanto em 1970, apenas 10 por cento do orçamento do Ministério da Saúde Pública se destinava a ser gasto em cuidados de saúde em hospitais privados, estima-se que actualmente mais de dois terços das receitas dos hospitais privados provêm de dinheiros públicos. De um modo geral, o Ministério da Saúde Pública também depende fortemente do financiamento e do apoio internacional. Alguns dos parceiros do Ministério incluem múltiplas agências das Nações Unidas, agências governamentais, fundos da UE, apoio do Banco Mundial e intervenção de ONG. Como referido anteriormente, estas parcerias operam a nível das clínicas do país, mas também no "reforço das capacidades" dos hospitais públicos. Por exemplo, o Hospital Universitário Rafik Hariri (anteriormente conhecido como Hospital Público de Beirute ou BGUH), que ajuda a liderar os esforços do país para conter a propagação da COVID-19, testar e tratar pacientes, conta com o apoio de organizações como o Comité Internacional da Cruz Vermelha e a Médicos Sem Fronteiras.
Por último, a dívida nacional, o défice comercial, a dissidência interna, as profundas divergências políticas e as pressões do sector privado influenciam a forma como o orçamento do Ministério da Saúde Pública é distribuído e gasto. Para além da presunção popular (frequentemente exagerada) de que os partidos políticos utilizam fundos públicos para fins clientelistas, os administradores de hospitais privados, médico/a(s) conhecido/a(s) e altamente influentes, bem como as empresas importadoras de medicamentos, desempenham um papel substancial na forma como os fundos do Ministério da Saúde Pública são desembolsados: para hospitais privados, para comprar medicamentos a empresas como Mersaco, Fattal, Pharaon, Omnipharma e outras. As empresas farmacêuticas beneficiam muito com o panorama da saúde privada do país. De acordo com dados da alfândega libanesa, em 2014, por exemplo, o Líbano importou 1,1 mil milhões de dólares em produtos farmacêuticos. Um total de 10 empresas controla 90 por cento do mercado, sendo que apenas quatro destas empresas controlam 50 por cento do mercado. Isto dá uma ideia aproximada do lucro extravagante que estas empresas devem estar a obter.
Como disse Yanis Varoufakis, os cuidados de saúde privados não só são ineficientes como também destrutivos. Cada dólar gasto em cuidados de saúde privados diminui as capacidades da nossa sociedade para lidar com pandemias. Não há qualquer argumento a favor dos cuidados de saúde privados e não só por tornar os cuidados de saúde dispendiosos e inacessíveis. No cerne de tudo isto estão também questões relativas aos significados associados à saúde e à doença, ao que conta como importante nas nossas sociedades, à forma como os/as profissionais de saúde são formado/a(s), valorizado/a(s) e remunerado/a(s), à forma como a perícia nega competências e conhecimentos mais gerais e à forma como os corpos humanos são considerados. Os cuidados de saúde privados exploram a vulnerabilidade humana face à morte. É simplesmente o pior e mais imoral tipo de exploração e despossessão (do próprio corpo em prol do lucro). O Líbano é um caso paradigmático. Com um sistema de saúde tão privatizado e fragmentado, é impossível desenvolver quadros de cuidados preventivos e curativos de saúde social (de cuidados de saúde como direito) e muito menos enfrentar uma pandemia como a COVID-19. Como referido anteriormente, as capacidades destrutivas dos cuidados de saúde privados giram em torno da incapacidade dos doentes para pagar e aceder aos cuidados, mas incluem também a própria capacidade de uma sociedade para lidar com uma pandemia. Desenvolvamos mais esta ideia tomando dois exemplos: as capacidades de teste do país e a recusa dos hospitais privados em realizar os testes COVID-19 e o tratamento gratuito dos doentes.
Durante a última semana de Março, a Ordem do/a(s) Médico/a(s) libanesa tinha condenado os testes COVID-19 que estavam a ser realizados por vários hospitais e laboratórios privados em todo o país e tinha apelado ao Ministério da Saúde Pública para que instasse as empresas importadoras a restringir as vendas a um punhado de hospitais qualificados. A Ordem do/a(s) Médico/a(s) também apelou ao Ministério para cobrir os custos desses testes nos hospitais privados. Os testes para a COVID-19 são realizados utilizando RT-PCR (reverse transcription polymerase chain reaction), uma técnica que permite medir a quantidade das sequências genéticas específicas do vírus. A RT-PCR é uma técnica altamente sensível que implica a utilização de diferentes protocolos, kits e tipos de primers (uma molécula utilizada para detectar e identificar as sequências genéticas do vírus). Requer também medidas de controlo de qualidade (repetições de testes para garantir a fiabilidade dos resultados) que são quase impossíveis de alcançar quando os testes estão a ser realizados casualmente. O risco e a percentagem de falsos negativos e falsos positivos (de consequências graves no caso da COVID-19) são assim aumentados neste cenário de cuidados de saúde. É provável que o número oficial de casos comunicados diariamente pelo Ministério da Saúde Pública não seja tão exacto como poderia ser.
Como seguimento, e numa circular emitida em 3 de Abril de 2020, o Ministério da Saúde Pública forneceu uma lista de 15 hospitais que considerou qualificados para realizar os testes COVID-19 utilizando RT-PCR. Um olhar rápido sobre essa lista revela mais duas deficiências: o acesso aos cuidados e a transferência de encargos para os hospitais públicos. Não existem hospitais para a realização de testes na região de Vale do Beqaa, no Sul, ou em Akkar. Apenas um dos hospitais da lista (Hospital Universitário Rafik Hariri - RHUH em Beirute) é um hospital público que realiza o teste gratuitamente. O/a(s) pacientes que se dirigiram para os outros hospitais tiveram de pagar os seus exames. O/a(s) pacientes que optaram por fazer o teste num dos centros universitários médicos mais conhecidos do país, em Beirute, declararam ter pago até 160 000 libras esterlinas (LBP) para abrir um processo médico (quando são novos pacientes nesse hospital específico), para além de 200 000 LBP para o teste propriamente dito. Alguns pacientes foram também convidados a submeter-se a radiografias torácicas e a pagar por elas. De forma semelhante, o director do RHUH, Dr. Firass Abiad, declarou no twitter que, quando as capacidades de teste do RHUH estiverem esgotadas, o RHUH envia testes para o Centro Médico da Universidade Americana de Beirute e para o hospital do Hotel Dieu de France (que pertence à Universidade privada Saint Joseph), como parte da colaboração do hospital governamental na luta para enfrentar a pandemia da COVID-19 - não é claro se o RHUH e o Ministério da Saúde Pública têm de pagar a estes dois hospitais privados por estes testes.
Existem formas diferentes de conceptualizar a colaboração entre os estabelecimentos de saúde públicos e privados. No Líbano, esta colaboração tem o seguinte aspecto: o sistema de saúde é criado para que as instituições privadas de saúde obtenham lucros enquanto hospitais públicos lidam com os riscos e encargos financeiros e médicos. A transferência de encargos é um quadro através do qual se pode explorar a dinâmica do sector da saúde, como por exemplo a transferência hierárquica e de género de encargos do/a(s) médico/a(s) para o/a(s) enfermeiro/a(s). No Líbano, o/a(s) enfermeiro/a(s) são altamente explorado/a(s), sobrecarregado/a(s) e mal pago/a(s). Segundo Mirna Doumit, a chefe da Ordem dos Enfermeiros, o salário de um/a enfermeiro/a a tempo inteiro pode ser de apenas 700 000 LBP. Com o contínuo colapso financeiro do país, vários hospitais reduziram os salários do/a(s) enfermeiro/a(s) e muitos enfermeiro/a(s) já passaram 5 ou 6 meses sem receberem salário. Mas o nosso interesse aqui é a dinâmica das relações entre os estabelecimentos de saúde privados e os hospitais públicos. Nos últimos anos, a crise do/a(s) refugiado/a(s) sírio/a(s) já aprofundou a nossa compreensão da forma como ocorre a transferência deste tipo de encargos. Os hospitais privados, embora contratados pelo ACNUR para tratar pacientes sírio/a(s) refugiado/a(s), recusariam frequentemente a admissão de pacientes com factores de risco elevados - pois este/a(s) poderiam necessitar de cuidados intensivos ou passar longas estadias no hospital. Há muitas razões para essa recusa de admissão, incluindo, entre outras: poupar capacidades limitadas de camas (especialmente na unidade de cuidados intensivos) para o/a(s) doentes que pagariam honorários mais elevados; e evitar a responsabilização por um pico nas suas taxas de mortalidade potencial - o que, como no caso da mortalidade materna, por exemplo, é normalmente investigado pelo Ministério. Estes casos acabam frequentemente em hospitais públicos.
No contexto da estratégia nacional do Ministério para fazer face à pandemia da COVID-19, o mandato para o hospital público de Beirute consiste em prestarcuidados gratuitos a todas as pessoas. Em teoria, o maior hospital do país (com uma capacidade potencial de quase 600 camas) é um hospital universitário que está equipado para lidar com casos complicados e cujo pessoal realiza investigação médica e é capaz de prestar cuidados de alta qualidade e de produzir conhecimento científico sólido. Mas os factos no terreno (e a correria das campanhas de angariação de fundos destinadas a apoiar o hospital) mostram que o pessoal está sobrecarregado, mal pago e exposto, que o equipamento é muitas vezes inexistente e que o estado geral das infra-estruturas do hospital é decrépito. Entretanto, aquando do desenvolvimento deste texto, os hospitais privados continuam a recusar cuidados gratuitos aos/às pacientes diagnosticado/a(s) com a nova infecção do coronavírus. O seu argumento: o Ministério da Saúde Pública e o Fundo Nacional de Segurança Social devem-nos dinheiro relativo a doentes que tratámos há muito tempo. Não está claro se se recusarão a admitir pacientes, no caso de o Hospital Público de Beirute ficar sobrecarregado (o que pode vir a acontecer).
Vários grandes hospitais privados em Beirute e arredores já anunciaram a criação de enfermarias especiais para diagnosticar e tratar pacientes diagnosticados com uma infecção de COVID-19. Num memorando dirigido às companhias de seguros (a maioria das quais exclui da sua cobertura os custos relacionados com a COVID-19 - os contratos destas companhias especificam que as pandemias não estão incluídas) e a pagadores privados terceiros, um desses hospitais, um estabelecimento francófono bem conceituado no subúrbio oriental de Beirute, enumerou o preço dos testes e tratamentos no seu "centro da gripe". Antes da admissão, os testes de diagnóstico (vários testes PCR, um exame torácico e uma consulta clínica) poderão custar até um total de 638 USD. Após a admissão, todas as noites passadas no hospital, excluindo o custo da medicação, consultas, etc., custariam a cada paciente: 1.000 USD num quarto isolado; 1.500 USD na unidade de cuidados intensivos quando não é necessário um ventilador; e 2.800 USD na unidade de cuidados intensivos quando é utilizado um ventilador. Aos doentes cobertos pelo Fundo Nacional de Segurança Social é concedido um desconto de 30%. Os procedimentos adicionais, incluindo a oxigenação extracorporal, uma técnica de oxigenação do sangue fora do corpo que desempenha temporariamente o papel do coração e dos pulmões quando não estão a funcionar adequadamente, são cobrados como intervenção única a uma taxa de 10.000 USD. A esmagadora maioria da população libanesa não pode dar-se a esse luxo, mesmo antes do colapso financeiro do país (quanto mais após a desvalorização da lira libanesa). Estas pessoas irão para o hospital público, mesmo que este esteja em ruinas. É um hospital para as pessoas pobres, não é assim? Mas então o que farão os hospitais privados se o hospital público for sobrecarregado, sobrecarregado além da sua capacidade? Recusar-se a aceitar pacientes? Desliga o botão quando após duas semanas na unidade de cuidados intensivos uma família já não conseguir pagar a conta? Afinal de contas não há direitos sob o capitalismo, apenas consumo. Recebe-se aquilo por que se paga. Lida com isso. Segue em frente.
Se o mundo está perdido, também estará o Líbano, ficando à beira da implosão. A nova pandemia do coronavírus veio agravar os efeitos de anos de exploração, extracção e desapropriação por parte dos oligarcas do país, que deixaram o país de rastos. Mas, como Adam Hanieh observou com razão, o mundo está de alguma forma a partilhar colectivamente esta experiência. Abordar a pandemia da COVID-19 e o desenvolvidmento da crise económica mundial requere uma abordagem global. Em quarentena ou não, nunca estivemos tão ligado/a(s), mas em "termos concretos", onde realmente importa, nunca nos sentimos tão sós. É aqui que voltamos ao enigma em que reside o cerne da questão: a tensão paradoxal entre a ciência e os avanços tecnológicos, por um lado, e as nossas relações com a vida e entre nós, por outro. Há uma ligação não surpreendente a fazer aqui com o outro trabalho muito citado de Arendt sobre As Origens do Totalitarismo - onde ela argumentou que o totalitarismo, como predisposição política, nasce desta mesma relação dialéctica. Na sua luta contra o novo coronavírus, os Estados têm respondido de formas cada vez mais totalitárias.
A pandemia da COVID-19 revelou as muitas formas como sofremos de uma dupla alienação: da "natureza" (as relações do ser humano com o ambiente) e do mundo social que criámos (o colapso económico) - se é que tal distinção é sequer possível. A política é o as que medeia. Como é que enfrentamos as calamidades? Como desconstruir o Banco Mundial? Como desmantelar o FMI? Como evitar que o capitalismo mundial, mais uma vez, se reinvente e aprofunde, mais uma vez, a alienação e aumente as desigualdades? Será possível um mundo, como disse Karl Marx, em que cada um pode realizar tudo o que deseje? Ao fazer estas perguntas, não estou interessado em sondar a pragmática das propostas políticas. Pelo contrário, procuro activar o trabalho da imaginação para que outros futuros se tornem possíveis.
No mínimo, ninguém deve morrer sozinho.
Foto: marviikad, Flickr